quinta-feira, 14 de agosto de 2014


"Foi um dia movimentado, aquele. Sua casca partia-se e refazia-se, entardecer sombrio e meio-dia cegante, intercalados. Fumou demais, sem terminar nenhum cigarro. Bebeu muitos cafés, deixando restos no fundo das xícaras. Exaltou-se. Ausentou-se. Nos intervalos da ausência distraía-se, entre susto e fascínio, em chamá-la também de A Grande Indiferença, ou A Grande Ausência, ou A Grande Partida, ou A Grande, ou A, ou. Na tentativa ou esperança, quem sabe de conseguindo nomeá-la conseguir também controlá-la.
Não conseguiu. Deseimportou-se com isso. Tomado a intervalos pelo anônimo, atravessou a tarde, varou a noite, entrou madrugada adentro para encontrar a manhã seguinte, e outra tarde, e outra noite ainda, e nova madrugada, e assim por diante. Durante anos. Até as têmporas ficarem grisalhas e afundarem os sulcos em torno dos lábios. Houvesse uma pausa, teria pedido ajuda, embora não soubesse ao certo a quem nem como. Não houve. Mas porque as coisas são mesmo assim, talvez por certa magia, predestinações, caminhos ou simplesmente acaso, quem saberá, ou ainda por ser natural que assim fosse, menos que natural, inevitável, fatalidades, trágicos encantos - houve um dia, marco, em que o tocaram de leve no ombro."
Caio Fernando Abreu - Morangos Mofados